Segmento é um dos mais lucrativas do mundo e também um dos que mais prejudica o meio ambiente
Em tempos de pandemia global e isolamento social, alguns eventos como o Fashion Week são totalmente descartados diante do quadro mundial. Apesar de algumas semanas já terem ocorrido, como na Europa, a de São Paulo foi adiada para outubro devido ao coronavírus, com data a ser confirmada. O evento traz as tendências do ramo para as próximas temporadas e movimento um dos mercados mais lucrativos do mundo, reunindo estilistas, produtores, modelos e grifes para falar do que será usado nos próximos meses.
De acordo com informações divulgada pela Valor Econômico, da ONU Meio Ambiente, a indústria da moda movimenta cerca de US$ 2,4 trilhões e emprega mais de 75 milhões de pessoas ao redor do mundo. A mesma matéria aponta que o setor perde ao menos US$ 500 bilhões ao ano com o descarte de roupas que são jogadas fora sem qualquer tipo de cuidado, como reciclagem. É uma indústria que polui mais que navios e aviões.
A alta movimentação desse setor, causada pelo fast fashion - fabricação de roupas em alta em grande escala - também leva ao impacto no meio ambiente. A reportagem da Valor Econômico mencionada acima mostrou que o setor é responsável por cerca de 10% das emissões de gases-estufas e que libera, por ano, 500 mil toneladas de microfibras sintéticas nos oceanos. Além disso, é a segunda área da economia que mais consome água. Para produzir um jeans são necessários algo em torno de 4 mil litros d’água. A situação tem se tornado insustentável diante da sobrevivência do planeta.
No Brasil, a estimativa é que esse setor descarte cerca de 175 mil toneladas de resíduos têxteis, dos quais apenas 20% são reutilizados ou reciclados. E, tendo em vista o fim dos recursos naturais, algumas empresas se posicionaram em relação ao caso e começaram a ter atitudes sustentáveis, como reutilização dos materiais que iriam para descarte ou reconstrução de peças antigas, a fim de dar uma nova finalidade para elas. Mas isso ainda é pouco. Para que haja uma mudança definitiva, os consumidores deste setor também precisam adotar um posicionamento consciente.
Sinais de mudança no setor
Para incentivar essa mudança, a iniciativa tem que começar das marcas desse setor. Algumas medidas mencionadas após a apresentação do relatório da ONU Meio Ambiente foi a confecção de tecidos feitos a partir de algodão orgânico ou produzido por proteínas de leite, reciclagem de sobras de tecidos e até mesmo itens produzidos com sumo de sucos cítricos. Essa última opção já é uma saída utilizada pela Salvatore Ferragamo.
Outra prática para surtir a mudança é repensar nos conceitos no qual as empresas se baseiam. Quando opta por uma postura mais sustentável, muitos quesitos sofrem alterações, pois a busca por atingir o reconhecimento por uma produção que não atinge a natureza envolve fornecedores, tipos de tecidos e outras matérias primas, métodos de fabricações sustentáveis e também como a empresa lida com os seus colaboradores.
A indústria de tecidos também está buscando se adaptar a essas mudanças. Algumas empresas estão apostando na fabricação de tecidos com propriedades antimicrobianas e repelentes líquidos, que aprimoram o tecido e faz com que demore mais tempo para desgastar e também para sujar. Para quem não conhece, os tecidos antimicrobianos são sintéticos ou de fibras naturais, protegidos por um ingrediente ativo que o torna resistente ao crescimento microbiano. Esse aprimoramento pode ajudar na redução do consumo doméstico da água.
Algumas recomendações para quem está nesse ramo e quer realizar uma mudança a fim de de garantir uma imagem sustentável é escolher fornecedores que trabalham com tecidos com “selo verde” ou eco friendly, como algodão orgânico - mencionado acima - ou tecidos “desfibrados”, que são compostos por retalhos ou fibra de garrafa pet. O uso de corantes naturais, que não atingem o meio ambiente é outra saída. E, apostar em peças clássicas e que sejam mais duráveis e atemporais é outra sugestão.
Uma alternativa viável: o brechó
A iniciativa também inspira os consumidores a tomarem atitudes conscientes. A onda de consumo sustentável não está apenas no ramo da moda, mas também se expandiu para o setor da alimentação, decoração e quaisquer outros itens envolvidos no dia a dia da pessoa. Os clientes também estão mais atentos a pequenos detalhes, como matérias primas, conhecer os valores da empresa e outros conceitos que tornam a marca sustentável.
O surgimento de brechós nos últimos anos representa essa mudança. Segundo dados da ThredUp 2018 Resale Report, o mercado de produtos de segunda mão em 2018 cresceu cerca de 47%, enquanto o varejo teve um desenvolvimento apenas de 2%. A Sebrae realizou um levantamento que mostrou que os brechós tiveram um crescimento de 210% entre os anos de 2010 e 2015.
O pilar que sustenta esse novo meio de compra e venda é que a roupa mais sustentável é aquela que já existe. A variedade de opções de brechós é gigante. Desde roupas de luxo até peças comuns, esse tipo de comércio conquista os consumidores por oferecer a opção sustentável de consumo e de forma mais barata. E não só consumidores comuns, algumas grifes e influencers também investem nesse ramo.
Partindo do princípio que a roupa pode ser ressignificada, algumas peças encontradas em brechós ou até mesmo dentro do próprio guarda-roupa são reformadas e vendidas. A prática da troca de produtos também ganhou o seu momento. Uma ação iniciada no Rio de Janeiro, o Projeto Gaveta, em 2013, incentiva a troca de peças que estavam paradas no armário em feiras de roupas. Devido à proporção que tomou, hoje o projeto realiza “festivais” de trocas de roupas, com direito a palestras, workshop, shows e vendas de marcas independentes.
Como dito acima, algumas grifes e influencers também aproveitaram dessa onda de sustentabilidade e consciência. As grandes marca a partir da ressignificação de peças antigas da marca, assim não investe em novos produtos e dá uma “nova cara” para o item. Já, as blogueiras realizam bazares para vender as peças que acumulam em seus guarda-roupas e também fazer uma social com as seguidores. Ninguém sai perdendo.
Moda Sustentável x Moda Consciente
Mas, em meio a tudo que foi falado, uma dúvida surge: qual a diferença entra a moda sustentável e a consciente? Muita gente confunde os significados ou até mesmo acha que é a mesma coisa, mas alguns conceitos se diferenciam. Tanto um como o outro estão relacionados a um consumo consciente, mas cada um carrega uma percepção diferente.
A moda sustentável está ligada a forma como os artigos de moda são produzidos. Não é apenas consumir produtos eco friendly, mas se preocupar com o processo de produção pelo qual aquele produto passa e quais os impactos desses processos no meio ambiente. Essa linha de pensamento vai contra o processo de fast fashions, já que prezam por produtos com maior durabilidade e que possam ser utilizados por muito tempo.
Entre os pilares defendidos estão a aplicação de corantes naturais e colas menos tóxicas, para evitar a poluição dos oceanos e lençóis freáticos; uso de tecidos eco friendly, que são produzidos com fibras orgânicas, com menos uso de água e produtos químicos na produção; reutilização de tecidos e materiais que seriam descartados; e a preocupação em produzir peças que sejam mais resistentes ao tempo e atemporal, que possam ser usadas em diferentes momento da moda.
Apesar da teoria ser maravilhosa, a prática ainda está longe de ser concretizada. Segundo uma pesquisa realizada no final de 2019, pela Future Impacts e 4CF, encomendada pelo Instituto C&A, a indústria da moda pode ser sustentável em 16 anos. Mas o planeta não tem esse tempo todo. No último ano a data de sobrecarga da Terra atingiu a data mais cedo em todo a sua história. A marca mostra o ponto máximo do uso de recursos naturais que poderiam ser renovados e, que a partir daquele momento, o consumo passa a superar o processo de produção da natureza e exigir mais do que ela consegue dar.
O levantamento aponta que se o atual processo de consumo permanecer, 75% dos especialistas entrevistados acreditam que será impossível alcançar um impacto positivo no meio ambiente e 62% acreditam que as más condições de trabalho e a pobreza, causada pela indústria, vão permanecer sem solução. Em contrapartida, o mesmo relatório também apontou 14 estratégias para a sustentabilidade, avaliando o impacto ao meio ambiente causado por cada uma delas a longo prazo e como elas poderiam ser priorizadas estrategicamente para lidar com o consumo dos recursos naturais.
Quanto a moda consciente, ela incorpora a sustentável, pois ela compreende não apenas a preocupação com o meio ambiente, mas também as questões sociais que envolvem a produção daquela peça. O consumidor dessa vertente quer saber as condições sobre a qual aquela roupa foi produzida, os materiais utilizados, quem produziu, sobre quais circunstâncias os colaboradores trabalham e qual o significado daquela peça.
O consumidor dessa vertente está em busca de informações sobre aquela marca, para ter “consciência” do que está usando, ela quer entender o produto que está adquirindo. Além disso, o consumidor consciente também questiona ou analisa as peças que tem no guarda-roupa. Invés de sair às compras, avalia os itens que tem guardado, se ainda podem ser utilizados ou reestruturados para ganhar um novo significado e, caso não seja mais uma roupa que atenda ao seu perfil, opta por ser doada ou disponibilizada em brechós ou lojas de aluguel de roupas.
A moda consciente também está muito ligado ao trabalho escravo. Nos últimos anos algumas marcas de renome, como a Zara, foram acusadas de trabalho escravo, o que levou os consumidores a pensar de onde aqueles produtos estavam vindo. Segundo uma pesquisa da The Global Slavery Index 2018, a moda é a segunda categoria de exportação que mais explora o trabalho forçado. O estudo aponta que cerca de 40,3 milhões de pessoas se encontra nessa situação e, desse total, 71% são mulheres.
Segundo os dados do Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil (Radar SIT), o país também não escapa do ramo da escravidão. Em matéria divulgada pela Pequenas Empresas & Grandes Negócios, em janeiro deste ano, as denúncias de trabalhos forçados aumentaram 45% na cidade de São Paulo. Durante os anos de 2015 a 2019, a cidade resgatou cerca de 524 trabalhadores em situações precárias de trabalho, a maior parte dessas pessoas vindas dos setores das indústrias têxteis, confecções e construção civil.
Analisando essas informações, fica fácil compreender o pessimismo dos especialistas quando questionados sobre a adoção da moda sustentável e consciente pela indústria. Apesar de serem conceitos que salvariam os recursos naturais e também o estilo de vida das pessoas envolvidas nesse ramo, muitos empresários ainda não tiveram a consciência para adotar esses pilares em suas marcas.
A manchete fica bonita, mas a adoção dessas mudanças traz impacto na parte financeira da indústria, que opta pela produção do fast fashion que a anos tem apresentado resultados econômicos satisfatórios para os relatórios mensais. Claro que não é generalizando as escolhas de todas as marcas, mas muito ainda preciso ser feito para que a indústria tenha uma mudança significativa. Algumas grifes já se posicionam de maneira sustentável e consciente e isso pode servir como um farol de inspiração para outras empresas adotarem o mesmo posicionamento.
Fonte: A Moda e a Cidade - Estadão | Valor Econômico | G1 | Revista Glamour | Etiqueta Única | Fashion Revolution | Exame
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