Ritmos musicais oriundos das comunidades, como o funk, sofrem com o preconceito da sociedade
O trânsito está parado, cada pessoa está presa no seu pequeno cubículo conhecido como carro e ao fundo é possível escutar uma melodia envolvente que te faz querer dançar. Pode não ter sido citado nenhum ritmo específico, mas é certeza que o funk tomou conta dos seus pensamentos.
Para contextualizar a história, o funk conhecido no Brasil não é o mesmo que originou lá nos EUA. Ele surgiu através da mesclagem entre soul music com R&B, rock e da música psicodélica. O ritmo se tornou marcante e ganhou popularidade em pouco tempo.
Devido à conotação sexual da palavra “funk”, o gênero acabou incorporando essa característica e trazendo para a sua música uma pegada dançante, “mais sexy” e com muito apelo sexual.
O funk conhecido no Brasil demorou um pouco para surgir. A partir da década de 80, o cenário musical dos Estados Unidos sofreu uma mudança drástica impulsionada pelo apelo comercial.
Nessa época o funk passou por uma transformação e ganhou vários subgêneros. O funk carioca, mais conhecido no país, surgiu a partir de um ritmo criado na Flórida, que dispunha de letras erotizadas e com batidas mais rápidas e foi essa música que deu início aos tão conhecidos bailes funk.
Chegada ao Brasil
Com a criação desse subgênero, em 1989 o funk ganhou a popularidade brasileira e costumava trazer músicas que falavam sobre drogas, armas e a vida nas favelas. Depois disso ganhou a conotação sexual, a imagem erotizada e também o tão conhecido “funk ostentação”.
Os primeiros bailes funk eram realizados na cidade do Rio de Janeiro e com a chegada da imprensa, o ritmo se espalhou pelo país e deixou de ser uma festa da periferia para conquistar o espaço em diversas outras camadas da sociedade.
Nos anos 2000 o funk brasileiro também passou pela sua fase de mudanças. Com a popularidade crescendo e muitos artistas ganhando os holofotes, o apelo comercial dominou os interesses artísticos e o ritmo apareceu em tudo quanto é lugar.
Nessa época surgiram os “bondes”, como o Bonde do Tigrão e também a inserção das mulheres nesse meio. Além dos bailes funk, era possível escutar essas batida em baladas, festas privadas e até mesmo em academias.
Daí para frente o gênero musical só cresceu. A indústria do funk ganhou importância e influenciou a vida de muitos jovens, tirando-os da pobreza e dando muitas possibilidades para a população da periferia.
Esses artistas, apesar de continuarem ligados a suas raízes, ganharam novos perfis, novas roupas e uma repaginação total da vida, ilustrando exatamente o que o funk trazia para suas vidas.
Gêneros
O funk no Brasil também ganhou características que representavam as regiões de onde os artistas estavam vindo e sobre o que eles queriam falar, os subgêneros. Eles foram divididos entre o Funk Carioca, que deu início aos outros gêneros e que também representa o 150 bpm, ritmo criado recentemente pelos DJ’s envolvidos no movimento; o Funk ostentação, muito comum entre os MC’s paulistas; e o Funk Pop, como da Anitta e da Ludmilla, que tem um foco mais comercial, com letras mais leves e toques que lembram o pop internacional.
Outros subgêneros, pouco conhecidos, mas que ainda influencia muitos artistas são o Funk consciente e o proibidão. Respectivamente, um fala sobre a vida da periferia, uma letra bem comum no rap,e o outro sobre sexo, uso de drogas e a vida do crime.
Repressão da cultura do funk e dos gêneros oriundos da periferia
Mas, quando se trata do Brasil, não podemos deixar de falar da repressão e do preconceito, que também é o foco desse texto. O povo brasileiro, apesar da miscigenação, ainda é muito sensível às diferenças alheias, ainda mais aquelas que não fazer parte do padrão de cultura européia.
O funk não é a primeira manifestação cultural atingida por esse preconceito. Nos anos de 1930 era comum as rodas de samba e os artistas deste gênero sofrerem com a repressão policial, assim como qualquer movimento ligado às culturas de matriz africana.
O público sempre teve dificuldade em aceitar que isso também era cultura e que os artistas não eram criminosos. Mas como representava uma realidade que não era das camadas mais privilegiadas, não eram vistos com bons olhos.
Nos anos seguintes, outro ritmo que sofreu com o preconceito e com a discriminação foi o rap. O gênero surgiu nas periferias e falava sobre a vida na favela, a realidade dura das comunidades e da presença das ações criminosas nas regiões.
O estilo musical foi ligado aos arrastões que aconteciam nas praias do Rio de Janeiro na década de 90 e daí para frente já é fácil imaginar o que aconteceu. O gênero começou a ser marginalizado pelas letras e pelo suposto comportamento que ele instigava.
Com o crescimento da popularidade do funk, ele começou a enfrentar a mesma discriminação. As origens ligadas aos dois ritmos anteriores não melhoraram a situação, mas nesse caso, o ritmo oferecia outras características que o caracterizavam como impróprio para o jovens consumirem.
Entre os argumentos para taxarem o ritmo como inapropriado, estão as letras sexualizadas, os vídeos provocantes e as danças insinuativas. Assim como a visibilidade e menção ao uso de drogas e o estilo de vida criminoso.
Mas no fundo não era só isso. O funk conta uma realidade que boa parte da população não tem conhecimento e por não saberem, agem de forma preconceituosa. Muitos ainda tentam entender, mas boa parte das pessoas preferem aderir ao preconceito.
Casos atuais de repressão
Hoje a cultura do funk tem muita aceitação, mas ainda sim sofre com a repressão de governadores e seus braços institucionais que impõem suas vontades. Durante o auge dos bailes funk no Rio de Janeiro, o surgimento das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), que tinham como objetivo livrar as comunidades das organizações criminosas, deram um jeito de limpar os bairros das festas.
Segundo eles, as ações implantadas nas comunidades eram para ir atrás dos traficantes responsáveis pela área, mas muitos DJ’s e MC’s sofreram com isso e foram presos também, por suposto “envolvimento com o crime”.
Um caso atual desse tipo de repressão foi a prisão do DJ Rennan da Penha, um dos precursores do 150bpm e que também deu visibilidade para o Baile da Gaiola, que no seu auge, movimentou de 7 mil a 25 mil pessoas durante as festas.
O artista ficou preso de abril a novembro de 2019 por suposto com envolvimento com o crime. A prova? Um vídeo de Rennan cumprimentando um membro da comunidade que mais para frente foi tido com um dos chefes do tráfico da região.
A criminalização do DJ foi a mesma coisa de você ser preso por conhecer a caixa da padaria, cumprimentá-la todos os dias de manhã e ela ser presa por desvio do dinheiro do caixa, como se você fosse um cúmplice. Conhecer os moradores do seu bairro se tornou um crime
Essa era a única prova contra ele. O processo foi bastante criticado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que questionaram a fragilidade do caso, por consistir em uma prova circunstancial que na verdade não legitimava o processo.
O caso só chamou mais atenção para a criminalização do gênero e o Baile da Gaiola se tornou um símbolo de luta contra essa repressão sofrida pelo estado. Mesmo depois de solto, as repressão ao baile permaneceram e ações policiais eram realizadas frequentemente para barrar as festas.
No estado de São Paulo também não foi diferente. Uma música que ficou muito conhecido a alguns anos foi a “Baile de Favela”, do MC João. A música listava alguns dos maiores bailes da capital de São Paulo e ele deu visibilidade para essas festas e para o público que às frequentava.
Entre os bailes citados está o da Dezessete, conhecido também como “DZ7”, localizado no bairro Paraisópolis. A comunidade fica ao lado de um dos bairros nobres da cidade de São Paulo, o Morumbi, e é considerada a maior favela da cidade.
O baile funk, que durante os seus dias de pico chega a movimentar até 5 mil pessoas, foi palco de uma das atrocidades causadas pela repressão da comunidade. Durante uma madrugada de dezembro de 2019, nove pessoas morreram devido uma ação da Polícia Militar na comunidade.
De acordo com os relatórios, os policiais estavam em perseguição a supostos atiradores, mas os vídeos e os relatos dos jovens não mostraram isso. Ao contrário, os vídeos mostram que os moradores foram encurralados e agredidos pelos policiais e, no meio da confusão, alguns jovens acabaram morrendo pisoteados.
O caso foi investigado pelo Ministério Público de São Paulo como homicídio e, na época das investigações, os policiais que participaram da ação foram afastados, mas as autoridades, mesmo com os vídeos e os relatos nas mãos, diziam que era impossível afirmar que “os policiais tivessem agindo de maneira errada”.
Lei do Silêncio
O caso de Paraisópolis não é uma ação isolada. Quando assumiu o governo de São Paulo, uma das promessas de governo de João Doria era acabar com os bailes funk, afirmando que as festas eram um “cancro que destrói a sociedade” e que os responsáveis pela administração desses eventos era o PCC (Primeiro Comando da Capital).
Essas afirmações e outras motivações foi o que levaram e estado e a polícia a realizar diversas ações para prevenir esse tipo de evento. De Lei do Silêncio ao combate às drogas, a repressão aos eventos só aumentaram durante o governo de Doria.
Em partes, a presença de drogas e participantes de organizações criminosas nesses eventos são inevitáveis, mas também é preciso reconhecer que os bailes funk fazem parte da cultura daquela população.
Assim como a Lei do Silêncio, que tem como intuito “combater” a poluição sonora e tornar mais pacífica a convivência entre os cidadãos, o combate às drogas é um dos disfarces utilizados pelas instituições repressoras a impor as suas vontades.
O engraçado é que festas muito parecidas com os bailes funk acontecem nas proximidades da Mackenzie, em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo. São festas com funk, regadas a bebidas e drogas e recheada de jovens das classes mais ricos. Eles não sofrem repressão da polícia ou mesmo do governo.
Isso nos leva a crer que o problema são realmente as comunidades, não tem nada a ver com o tipo de evento. A discriminação funciona exatamente dessa forma. Os ricos podem se comportar como se estivessem em uma baile funk, mas os pobres serão rechaçados, perseguidos e mortos.
Representatividade
A cultura do funk vai muito além da diversão para as comunidades. Algumas pessoas acreditam que a realização de bailes funk acontecem pois os bairros não tem mecanismos de lazer para a população, mas estão enganados.
As festas fazem parte do convívio do povo que vive ali e muitos dependem dos eventos para a sua sobrevivência. A representatividade do funk vai além das histórias contadas nas músicas.
Além dos jovens que se beneficiam da música, comerciantes locais lucram com a venda de bebidas durante as festas, empresários locais se beneficiam com a venda de roupas e acessórios ligados a moda dos frequentadores, assim como as barbearias e salões de beleza da região, que recebem boa parte da população que quer se preparar para o baile.
Não só o funk, como também os outros gêneros marginalizados deveriam ser vistos como parte essencial para a formação da população. As pessoas não são feitas apenas da cultura branca européia importada pelos colonizadores.
O brasileiro rico vive uma realidade que não é palpável para 99% da população. Querem encaixar um estilo de vida que não é compatível com as comunidades e desprezam as manifestações culturais desenvolvida por esse povo, que também representa sua identidade.
Enquanto houver ações opressoras como as mencionadas neste texto, a sociedade ainda não terá compreendido o que é respeito pelo próximo e a batalha será eternamente travada, entre aqueles que não entendem e aqueles que querem fazer valer o seu poder de representatividade.
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